De todas as lendas que sustentam os fundamentalismos cristãos, talvez
nenhuma seja mais infundada – e por certo nenhuma é mais útil – do que a
ideia de que há um único modo de se ler e de se entender a Bíblia, um
modo de interpretação que permaneceu inalterado ao longo dos milênios e
que corre nos nossos dias o risco de ser miseravelmente derrubado pelas
licenciosidades interpretativas e morais dos liberais.
Reza a lenda que esse método fechado de interpretação – e usam-se
para descrever sua autoridade palavras fortes como “literal” e
“inerrante” – é eterno, fora do tempo e inteiramente impermeável às
variações da história. Desse modo, a lenda exige que Lutero interpretou a
tradição bíblica da mesma forma que Paulo, que a interpretou da mesma
forma que Jesus, que a interpretou da mesma forma que Esdras, que a
interpretou da mesma forma que Isaías, que a interpretou da mesma forma
que Davi, que a interpretou da mesma forma que Moisés, que a interpretou
da mesma forma que Abraão.
A ortodoxia não pode existir sem a lenda de uma exegese fora do
tempo, porque quando diz que a Bíblia é a inerrante Palavra de Deus o
fundamentalista não está dizendo apenas que o texto bíblico é eterno e
imutável, mas também, e em especial, a sua interpretação. Para
que a própria ideia de fundamentalismo faça sentido, a história e suas
novidades devem se manter inteiramente incapazes de lançar novas luzes
hermenêuticas sobre a letra da revelação. Qualquer possibilidade de
interpretar-se a Bíblia a partir da nossa presente condição deve ser
encarada como insidiosa tentação, pelo que a única interpretação
autorizada deve necessariamente ter sido definida, sem margem de
manobra, não só quando nós mesmos entramos em cena, mas desde sempre.
O fundamentalista, portanto, não é quem lê a Bíblia literalmente, mas
quem não consegue enxergar qualquer diferença entre a Escritura e a sua
compreensão pessoal dela. Na prática, trata-se de alguém apaixonado não
pela inerrância de um texto sagrado, mas pela inerrância da sua própria
interpretação. E, como não quer ter de reconhecer que sua leitura é tão
seletiva e historicamente condicionada quanto qualquer outra, o
fundamentalista precisa batalhar ostensivamente para que não apenas o
texto, mas também sua interpretação autorizada se mantenham inalterados
diante de novos contextos.
O problema com essa noção de uma interpretação bíblica que permaneceu
inerrante e imutável ao longo dos séculos, inteiramente imune às
influências dos fatos novos e da passagem do tempo, é que ela é
espetacularmente negada não só pela história, mas pela própria narrativa
bíblica.
O que impulsiona o drama da revelação na Bíblia são precisamente os
modos através dos quais as novas perspectivas sociais e históricas
constrangem os israelitas e seus herdeiros a retrabalhar e reinterpretar
um corpo antigo e mais ou menos fixo de tradições bíblicas, de modo a
encontrar nele novos significados e novos desafios à luz desconcertante
do momento presente.
Nesse sentido, a Bíblia não é o registro da realidade eterna dos
feitos divinos, mas a história das reformulações da imagem divina que os
homens se viram forçados a fazer diante da realidade cambiante dos
fatos. Não é a descrição de um Deus imutável, mas a descrição
progressiva e cumulativa das feições divinas que os homens creram que o
próprio Deus ia revelando a partir dos indícios da história.
É a própria Bíblia, portanto, que nos ensina que novas circunstâncias
não apenas permitem, mas requerem novas interpretações de um mesmo
corpo de tradições bíblicas. Os cronistas, os salmistas, os profetas,
Jesus e Paulo (bem como os que foram registrando as suas histórias) –
todos esses propuseram interpretações das tradições bíblicas que se
distanciavam sensivelmente do ensino da ortodoxia da sua época. E, muito
declaradamente, não o fizeram movidos por outra coisa que não a
perspectiva privilegiada que sua posição na linha do tempo concedia a
cada um. O testemunho coletivo dessas vozes intra-bíblicas é que as
revoluções da história fornecem chaves de interpretação que quem deseja
aproximar-se da divina herança não se pode dar ao luxo de ignorar.
Os eventos que influenciaram e alteraram a interpretação das
tradições judaico-cristãs dentro do intervalo em que o cânone da Bíblia
foi composto incluem, só para citar os mais importantes:
- o estabelecimento em Davi e Salomão de uma monarquia unificada, dotada de um local centralizado de adoração e de um sacerdócio especializado. A ascensão da monarquia acabou abafando as ênfases anárquicas e num governo descentralizado que parecem ter prevalecido nas tradições mais antigas – como atestam, por exemplo, muitos trechos do Pentateuco e todo o livro de Juízes. Um testemunho sobrevivente da hesitação que predominava anteriormente com relação à monarquia aparece no discurso de divina advertência em 1 Samuel 8. A história de Israel até o momento da ascensão da monarquia e do sacerdócio centralizado teve de ser literalmente reescrita (isto é, reinterpretada) à luz da nova forma de governo. Para uma comparação entre tradições e interpretações por vezes abertamente antagônicas, é sempre útil contrastar os livros de Samuel e de Reis à narrativa de Crônicas.
- a destruição do reino do Norte pelos assírios (em 721 a.C.) e mais tarde (em 587 a. C.) a destruição de Jerusalém e a dissolução do reino do Sul pelos babilônios, com a consequente vida nacional no exílio. As invasões dos assírios e a destruição do reino do Norte fizeram com que as antigas tradições fossem reinterpretadas como favorecendo a tribo de Judá, berço do reino sobrevivente. Porém as expectativas de um “trono eterno” para a linhagem de Davi foram demolidas juntamente com o Templo um século e meio depois. Vivendo na diáspora, os exilados de Judá viram-se obrigados a rever suas noções estabelecidas sobre misericórdia, fidelidade e soberania divinas. Longe da pátria e impedidos pela falta do Templo de continuar oferecendo os sacrifícios prescritos pela Lei, acabaram concluindo que haviam em grande parte interpretado erroneamente a letra do Pentateuco. As novas circunstâncias levaram-nos a entender que uma rígida religiosidade exterior não era o que Deus valorizava ou requeria de Israel em primeiro lugar, mas sim uma postura de misericórdia e um coração contrito. Nessa releitura das antigas tradições consiste o bojo da proclamação dos profetas.
- a conquista do Oriente Médio por Alexandre, o Grande, e a resultante helenização das regiões em que viviam os judeus. Os judeus no exílio tiveram de aprender a manter a identidade nacional/religiosa diante da competição das culturas em que estavam inseridos, e foram nisso notavelmente bem sucedidos. Porém a cultura grega, que tomou conta do mundo conhecido a partir das vitórias de Alexandre, mostrou-se eloquente e cativante demais para ser evitada indefinidamente. Logo as ideias dos gregos estavam influenciando o modo como os judeus liam seus próprios textos e pesavam sua própria herança. Essa influência acabou remodelando a tradição bíblica de muitas formas. Em primeiro lugar, a Bíblia hebraica foi traduzida – isto é, reinterpretada, visto que traduzir é interpretar – para a língua grega. Quando citam a Bíblia hebraica, os autores do Novo Testamento (que escreviam em grego) fazem uso dessas versões e das interpretações que elas trazem embutidas em si. Segundo, muitos intérpretes judeus (dos quais o mais ilustre foi Fílon de Alexandria) procuraram conciliar as tradições judaicas com a filosofia grega, aplicando ao mesmo tempo os métodos de interpretação dos pensadores gregos aos seus próprios textos sagrados. Finalmente, a ênfase grega no indivíduo parece ter influenciado diretamente a composição e a teologia da terceira porção da Bíblia hebraica, em que a devoção nacional e coletiva (que prevalecia nos textos mais antigos) é substituída pela relação pessoal do adorador para com o seu Deus.
- o ministério e a morte de Jesus de Nazaré. Levando a um novo extremo a herança subversiva dos profetas que o precederam, Jesus propôs uma radical reinterpretação das tradições do Antigo Testamento. Para Jesus, a vitória do Deus de Israel sobre seus competidores nada tinha dos êxitos políticos, econômicos e militares que os judeus vinham sonhando para o seu futuro. O iminente reino de Deus deveria representar uma reformulação intransigente e universal do espírito humano, uma revolução de beleza, cavalheirismo e graça que evitaria todas as armadilhas dos sistemas de poder e de manipulação que governam este mundo. Frases como “vocês ouviram o que foi dito… eu porém digo a vocês…” e “não vim anular, mas cumprir” apenas atestam que era de modo muito consciente que Jesus vinha propor a completa reformulação da posição sobre Deus, justiça, nação, valor e identidade que prevalecia na ortodoxia dos seus dias. A vida frugal, o ensino subversivo e a morte prematura de Jesus levaram os primeiros cristãos a reavaliar por completo o que pensavam que o Antigo Testamento dizia sobre a pessoa e a obra do Messias – bem como sobre todos os sonhos de Deus para a humanidade.
- o ministério e os escritos do apóstolo Paulo. Paulo entendeu mais e antes do que qualquer outro que a singularidade da pessoa e da obra de Jesus representavam um convite à transformação não apenas da nação judaica, mas do mundo inteiro. Ele dedicou a vida à dupla tarefa de divulgar a boa nova império adentro e de vasculhar as tradições bíblicas em busca de confirmação para seu parecer sobre a primazia de Jesus e sobre a natureza de seu próprio ministério. Paulo foi o primeiro a ousar reinterpretar a Bíblia inteira à luz da pessoa de Jesus, e o que encontrou deixou maravilhadas gerações de leitores.
A Bíblia contém em si mesma, portanto, numerosos precedentes para a
reinterpretação da natureza da revelação à luz de novas circunstâncias
históricas. Como epitomado na postura de Jesus, essas novas leituras não
requerem a invalidação da autoridade das antigas tradições; o que pedem
é uma nova e generosa reavaliação das implicações dessas tradições para
os desafios e particularidades do momento presente.
Essa variedade nas cores da exegese intra-bíblica demonstra que a
própria Bíblia não ignora que é da condição humana interpretar as
tradições que respeitamos de um modo que faça mais sentido dentro de
nossa própria perspectiva histórica e conceitual. Seu testemunho é que
não há um modo único e “literal” de se entender a significância do
legado bíblico. E mais: quando feito de mente aberta e com um coração
compassivo, interpretar-se as antigas tradições à luz das demandas do
presente pode nos proporcionar uma visão mais clara a respeito de Deus,
não uma visão deturpada ou desrespeitosa.
E que a interpretação da Bíblia não se manteve estática depois que o
cânone estava concluído a história dá testemunho mais do que abundante.
Alguns dos eventos que representaram gatilhos para profundas
reinterpretações das tradições bíblicas:
- a destruição de Jerusalém e de seu Templo, em 70 d.C., resultado da revolta dos judeus contra a ocupação romana;
- a perseguição romana contra os cristãos;
- o fato de que o cristianismo foi se tornando um movimento predominantemente gentio, acompanhado de um crescente rancor contra os judeus dentro do movimento;
- a promulgação do cristianismo como religião legal do império romano, pela mão do imperador Constantino;
- os concílios cristãos e o fechamento do cânone;
- a cisão entre o cristianismo ocidental e o oriental;
- a Reforma e Contra-Reforma;
- a difusão do pensamento racionalista e materialista e as revoluções científica e industrial;
- o Holocausto dos judeus europeus pela mão dos nazistas;
- a secularização definitiva da cultura no século XX e os ventos da pós-modernidade no terceiro milênio.
A análise dessas e outras instâncias demonstra que o
conceito de uma interpretação bíblica que permaneceu estática, isenta e
inalterável ao longo dos milênios, até os nossos dias, é na melhor das
hipóteses equivocado – e, na pior, mentiroso.
O estudo desses exemplos ajuda a provar ainda que interpretar
a Bíblia a partir da nossa perspectiva histórica pode, em muitos casos,
significar simplesmente interpretar a Bíblia em nosso próprio favor. Essa
narrativa (que também é a nossa) demonstra que a exegese bíblica pode ser usada
como ferramenta arbitrária de dominação, de divisão e de exclusão.
Restam porém os casos (como o de Jesus e o dos profetas) em
que a reinterpretação das tradições bíblicas à luz do momento presente promove
uma noção mais avançada e madura de Deus, resultando numa relação mais saudável
entre os homens. O que essas instâncias positivas têm em comum é que o Deus
descrito por elas é sempre mais misericordioso e menos tribal, mais inclusivo e
menos vingativo do que a figura divina que prevalecia anteriormente. As
interpretações que fazem a revelação avançar falam de um Deus cada vez menos
obcecado com a justiça e cada vez mais obcecado com o amor. Falam, numa
palavra, de um Deus maior: o Deus que já gostamos de chamar de criador mas que
preferiu ser chamado de Pai.
E ninguém soube falar dessas coisas com mais intimidade do
que Jesus. Como indicado por ele, um Deus maior não é o requer mais amor para
si, mas o que espera mais amor entre os homens. Um mundo mais justo não é
aquele em que Deus pode exercer sem impedimentos o seu poder, mas um mundo em
que os homens renunciem em favor uns dos outros à busca insensata pelo poder.
Fiel não é quem pede a Deus misericórdia sobre si mesmo, mas quem concede
misericórdia aos outros.
* * *
Se não deve haver dúvida de que a interpretação bíblica não
permanece estática, mas é renovada pela perspectiva de cada época (e, num certo
sentido, de cada leitor), cada um permanece livre para reagir como quiser
diante dessa notícia. Para alguns, essa contínua reformulação é clara indicação
de que cada época acaba criando o seu Deus à sua própria imagem e semelhança.
Para outros, é indicação de que o da Bíblia não é o Deus fora do tempo dos
filósofos e dos sábios, mas o Deus de Abraão, Isaque e Jacó – o Deus que se
revela no calor da história.
Talvez, como fazia Jesus, seja necessário renovar
continuamente a crença de que a divindade continua trabalhando: de que não
concluiu a sua criação e permanece se des-cobrindo como cada vez maior e mais
ambicioso – na prática, um Deus cada vez mais invisível, mais recatado e mais
indistinguível do exercício da mais simples e ardente humanidade.
Este texto foi escrito pelo Paulo Brabo do Bacia das Almas, clique e faça uma visita ao blog dele ^^